Desejo - Conto Sáfico
Mel está passando pelo surto da pré-adolescência, uma fase cheia de mudanças. No meio disso, se encontra perdidamente apaixonada por uma jogadora de Handebol. Será que tem futuro? Parte 1/4
I
31 Dezembro de 2022
“Oi Iemanjá, sou eu de novo, a Mel… Desculpa encher o saco da senhora, sei que hoje todo mundo deve estar te pedindo um monte de coisa e não queria encher o seu ouvido. Se você puder, pode me dar coragem pra eu chegar na Lana? E fazer ela reparar em mim? To fazendo tudo certinho no barracão e fiz uma oferenda linda pra senhora! Se não puder, tudo bem, mas se fizer eu vou ficar muito feliz!” – Empurro o barquinho de oferenda pra ela no mar, enquanto oro com todo o meu amor e fé. – “E não se preocupe, eu já tenho 14 anos! Meu pai diz que está no tempo de amar e eu já amo a Lana! Tô pronta pra seguir com isso, não vou deixar de fazer nada no barracão, Prometo!” – Uma onda bate forte em mim e quase vira meu barco com as oferendas.
—Ei! Eu prometo! Eu consigo lidar com estar apaixonada por Lana Ferreira de Sá e ainda assim fazer minhas obrigações! Vou fazer ela muito feliz, você vai ver, esse vai ser meu ano!
14 de fevereiro de 2023
De um dia pro outro, eu deixei de ser criança, e admito que eu não entendi exatamente quando foi. Não sei se foi quando começaram a crescer pelos por todos os lados, ou no dia em que praticamente tive um ataque de nervos, gritando com os meus pais pela coisa mais besta do mundo ( fiquei de castigo por duas semanas), ou então… quando minha visão sobre as mulheres começou a mudar e ninguém, absolutamente ninguém, foi me explicar o quê estava acontecendo.
Depois de pesquisar no Google, descobri que essa fase horrível que eu tô vivendo se chama "pré-adolescência" e que nessa fase a gente tem muitos hormônios, muita mudança no corpo, e comportamental também. Não tenho certeza de como me sinto com isso de mudança de corpo. As garotas da minha escola estão ficando mais "encorpadas", enquanto eu fico com espinhas na cara e parecendo mais com um saco de batatas e menos como as garotas bonitas dos comerciais.
Ainda mais aqui, no bairro onde eu moro, em que as garotas da minha idade estão saindo pela rua, exibindo seus corpos em roupas curtas, enquanto eu saio com roupas escuras e largas, morrendo de medo de alguém me ver, de alguém perceber que eu não estou na caixinha que eu deveria estar. É como se eu tivesse nascido no lugar errado, com toda minha diferença e… bem, minha homossexualidade. Mas não me entenda mal, eu não me culpo e nem perco tempo com isso da minha sexualidade. Meus pais, que são médiuns de carteirinha (para minha desgraça, já que nem todos os segredos eu consigo guardar deles), jogaram nos búzios e viram que eu era lésbica e que estava apaixonada por uma mulher da região. Eles passaram duas semanas sabendo e não me contaram nada, só vieram me contar no dia em que voltei para casa chorando, porque uma das garotas do bairro, aquela por quem eu era apaixonada, apareceu com um namoradinho novo. Em geral, eles reagiram bem e só pediram para eu ter cuidado na rua e com as pessoas para quem eu contava sobre minha sexualidade. Mas como eu poderia ter cuidado em um bairro em que todas as garotas são tão bonitas?
Tá, não posso só culpar a Jéssica, a caixa do mercado pela qual fiquei apaixonada, eu também tenho que culpar uma das minhas séries do momento: Pretty Little Liars. Até que a história é legal, tem umas partes meio cafonas e tudo mais, só que ela tem uma coisa que me faz brilhar nos olhos, além de mulheres lindas: a Emily Fields, interpretada pela atriz Shay Mitchell, uma personagem que se descobre lésbica e pega as mulheres mais bonitas da série! Só Deus e meus orixás sabem o quanto eu invejo essa mulher… Enfim, como eu ia dizendo, além de Pretty Little Liars, outra coisa que me ajudou a reforçar meu sentimento por mulheres foi o Handebol.
Okay, preciso admitir que não sou, nunca fui e nunca serei uma mulher de praticar esportes, só comecei a gostar de handebol quando uma amiga me levou para ver ela jogando. Só faltou meus olhos saírem das órbitas de tanta empolgação! Era como o paraíso! Mulheres bonitas, correndo suadas pela quadra, com roupas apertadas… ai, perdão Iemanjá, eu estou muito pervertida… eu, hein!
Com essa paixão repentina pelo Handebol, minha mãe achou que era uma ótima ideia eu fazer o teste para o time da minha escola. Admito que eu achei a ideia péssima, estava morrendo de medo de passar vergonha na frente de várias meninas bonitas! Por conta disso, fiquei um bom tempo parada no corredor, de braços cruzados, e tomando coragem para entrar na quadra, quando… eu a vi passar.
Lembro como se fosse ontem. Era um dia quente, ela veio andando pelo corredor, indo pra quadra, sua pele negra brilhava no sol, o cabelo preto e cacheado amarrado perfeitamente em um rabo de cavalo que balançava de um lado pro outro, seus olhos castanhos brilhando em tom caramelo e um sorriso confiante em sua boca, feita de lábios carnudos. Foi naquele momento que eu soube: estava completamente apaixonada.
O nome da mulher que roubou meu coração é Lana Ferreira de Sá, que fazia teste para pivô, enquanto eu tentava a sorte como goleira. Não preciso nem dizer que não passei, né? Ela fez seis gols em mim, porque eu estava ocupada admirando sua postura confiante e seus shorts e regata apertada. O suor parecia combinar perfeitamente com ela, a única garota a ficar linda suando como um porco. Pode ser também que eu só não tive coragem de ir contra aquele olhar determinado, acho que se ela não conseguisse ser titular como pivô, eu teria cometido um crime para que isso acontecesse. Mesmo tendo perdido de maneira categórica, desde outubro de 2022, quase que religiosamente, eu fico depois da aula só para ver ela treinar, toda terça e quinta.
Com isso de ficar depois da aula, comecei a ajudar com os equipamentos, era o mínimo que eu podia fazer, já que me sentia meio inútil por só olhar e não fazer nada. Em um dos dias de treino, descobri que não era só a beleza da Lana que era apaixonante, ela toda era! Agia como uma miss simpatia, sorria e era gentil com todos da equipe do Handebol, e também era muito solícita, tanto que já se ofereceu para me ajudar a levar os equipamentos de volta para o depósito, onde os professores guardam tudo que é de esportes, desde coletes e bolas de handebol, até bambolês tortos e coloridos.
Nesse dia em específico, eu estava completamente constrangida e acho que dava para notar, principalmente porque fiquei em silêncio o tempo todo. A máquina de lavar da minha casa tinha dado pau, e minha mãe e eu não tivemos tempo de lavar tudo à mão, por isso precisei usar meu uniforme do ano passado, e ele estava um pouco… apertado demais. Sentia-me exposta, sentia que a Lana podia ver cada parte do meu corpo, cada dobra, cada traço, e isso estava me deixando desconfortável.
— Você não precisava ter me ajudado a trazer tudo, Lana. — Puxei assunto, tentando me distrair um pouco, já ficando vermelha, ela tinha esse efeito sobre mim, só de ficar próxima eu começava a esquentar.
— Imagina! Você não joga, mas tá sempre ajudando o time, o mínimo que eu poderia fazer é te ajudar a trazer as coisas pra essa sala mofada. — Ela balança a mão na frente do nariz, tentando espantar o cheiro tenebroso de mofo da sala. Não evito dar uma risada.
— Eu só sou uma fã de Handebol, não tem nada de mais nisso. — Juntei minhas mãos atrás do corpo, eu estava desconcertada, não sabia exatamente o que fazer perto dela. — E também, quem sabe assim eu não emagreço um pouco? — Brinquei, mas em resposta recebi um olhar amedrontador da Lana.
— Quem tá colocando essas coisas na sua cabeça, Mel? Se foi alguma das meninas do time, me fala que eu vou agora mesmo brigar com elas, isso não tá certo! — Afirmou, o peito se estufando de certezas, enquanto o meu murchava de vergonha.
Ninguém falou do meu corpo… diretamente. Mas dava para saber o que achavam dele, pelos olhares penetrantes, toda vez que o calor me vencia e eu precisava tirar meu moletom, deixando meu corpo amostra na camiseta ridiculamente apertada e transparente da escola. Também peguei uma conversa no ar esses dias, onde a Larissa, artilheira do time, fofocava com as outras garotas, sobre como eu estava gorda, e que devia tentar ser pelo menos a faz-tudo do time, que se eu corresse um pouco todos os dias, poderia ter um corpo como o delas. Na verdade, acho que não peguei nada no ar, tenho certeza de que a Larissa sabia que eu estava atrás da arquibancada.
— N-ninguém! Não precisa brigar com ninguém por conta disso. É só que… você sabe. — Cocei minha nuca, baixando meu olhar, me sentindo insegura demais pra olhar em seus olhos. Também não sabia se podia me abrir com a Lana, tinha medo dela acabar ficando com repulsa de mim. — Você, as meninas do time, têm um corpo tão bonito, sabe? Queria poder ter um assim também.
Um silêncio ensurdecedor ficou na sala, e já estava me desesperando para falar qualquer coisa, mas quando senti duas mãos nos meus ombros, meu olhar subiu, encontrando o rosto da Lana perto de mim, seus olhos brilhando de certezas, eu sentia como se ela fosse a mulher mais confiante no mundo e não existisse nada que pudesse a deter.
— Você não precisa ter o corpo igual ao de ninguém, Mel. O seu corpo é lindo, e não deixe ninguém te dizer o contrário disso! Se você quiser que ele mude, faça por conta própria, mas não porque alguma idiota padrão do Handebol te disse isso, certo? – Ela abriu um sorriso, mas naquele dia eu não consegui sorrir de volta, só olhar para ela, admirada.
Depois daquela conversa, minha paixão pela Lana só floresceu e eu comecei a ir ainda mais motivada para os treinos, não faltando mais em nenhum, sendo mais regrada do que algumas meninas do time. Isso surpreendeu positivamente a professora Cláudia que, achando lindo o meu “amor intenso” por handebol, me deixou como reserva do reserva. Sim, ela criou o reserva do reserva, só para me incluir. Não sei se achava isso fofo ou me sentia patética por causar pena na treinadora mais durona que eu conheço.
A verdade, é que meu amor intenso era ver a Lana correr pela quadra e fazer gols lindos contra a goleira titular, a chata e insuportável da Ana Beatriz, que vive ao redor da minha Lana, babando o ovo dela e indo para todo canto que ela vai. Tipo, se toca garota! Eu que sou a verdadeira fã e admiradora secreta da Lana, não você!
Mesmo que como goleira titular, ela passasse mais tempo perto da Lana do que eu, ser reserva do reserva tinha seus benefícios. Um deles é que eu poderia assistir à Lana jogar sem ninguém me perguntar nada. Gostava de ficar na arquibancada, fazendo adaptações de músicas românticas no meu caderno, enquanto assistia à ela correr pela quadra e fazer boas assistências e gols lindos!
Gostava de mudar as letras das músicas, alterando algumas características físicas e até o momento que estamos vivendo. Na realidade, o momento que eu estou vivendo, já que estou sozinha nessa coisa de paixão. Por mais gentil e bacana que a Lana fosse comigo, ela ainda não tem a menor ideia do que eu sinto por ela, e acho que a melhor maneira de mudar isso, é contando pra ela sobre meu amor.
Em dezembro, eu e meus pais fomos passar a virada do ano na praia e, como a umbandista que sou, montei a oferenda mais linda de todas para a minha mãe Iemanjá, que é a padroeira do amor. Todo mundo recorre a ela quando precisa de ajuda no amor e eu não poderia fazer diferente. Claro que, além disso, eu tinha outros motivos para amar tanto Iemanjá.
Sempre ouvi falar dela como a rainha dos mares, uma mulher linda, que decide o destino de cada um que entra no seu mar. Sendo da umbanda desde criança, nunca tive medo do mar, porque sempre pensava que Iemanjá estaria ali para me salvar, e de certa maneira eu estava certa, mas também não deveria ter procurado sarna para me coçar. Com oito anos, tive a bela ideia de entrar no mar sozinha, a maré começou a me levar, e eu a me afogar, lembro de como eu implorei a Iemanjá que viesse salvar minha vida, que tivesse pena de mim e que se ela me salvasse, todo ano iria fazer oferendas lindas para ela.
Minha lembrança depois disso, é quase como se fosse um sonho febril, sabe? Daqueles que você não entendeu muito bem o que estava acontecendo e nem como foi direito. Lembro de ter sido pega no colo por uma mulher de pele negra, seus cabelos, mesmo molhados, eram volumosos, ela tinha um sorriso gentil e eu não conseguia ver os seus olhos, eu até pensei em subir a cabeça para olhar, mas quando notei, já estava sentada na beira, ouvindo meus pais me gritarem.
Nunca esqueci o sentimento de gratidão e paixão que senti naquele dia E como prometido, todo final de ano, vamos à praia e eu faço oferendas cada vez mais lindas, querendo agradecer por tudo que ela fez e tem feito por mim. Desde então, é a ela que eu recorro em qualquer oração minha, e falar da Lana para Iemanjá parecia a melhor coisa a se fazer, mas mesmo que ela me ajude a fazer a Lana me notar, ainda seria eu que teria que ir falar com ela pessoalmente e entregar uma das minhas (várias) cartas feitas pra ela.
Como diz minha mãe, “a gente não pode ganhar na loteria se não jogarmos, é querer ficar rico sem fazer nada para que isso aconteça”. Com a Lana é a mesma coisa, eu não posso querer que ela goste de mim do dia para noite, se eu não faço nada para mudar o pensamento que ela tem sobre mim.
Também não sei qual é exatamente o pensamento que ela tem sobre mim, mas sei que desde que pedi uma forcinha para minha mãe Iemanjá, a Lana tem prestado cada vez mais atenção em mim. E acho que agora é um ótimo momento para colocar algumas coisas a limpo. Não me entendam mal, eu não fiz nenhum trabalho para prender a Lana a mim, Deus me livre, nem sequer gosto desse tipo de magia, só atrasa a vida da gente e deixa alguém completamente obcecado por você. Se obsessão já é ruim, imagine uma obsessão sem propósito, é como se você colocasse um sentimento artificial dentro da pessoa, um amor artificial, que faz você ficar preso a alguém que não está no seu destino.
O que pedi, foi apenas para Iemanjá fazer a Lana prestar mais atenção em mim, me perceber nos lugares, falar comigo, saber que eu estou ali. Detestaria que ela gostasse de mim por ser forçada a isso, e por mais que me doa, se ela não está no meu caminho, não tem nada que eu possa fazer sobre isso, além de confiar que coisas melhores virão para mim.
Com tudo isso acontecendo, agora era minha hora de ir atrás e me declarar, e por isso estou bem empenhada em fazer uma carta com as músicas perfeitas, adaptadas para o nosso contexto e com palavras fofas no final, para quem sabe assim, a Lana finalmente goste de mim de volta.
Tendo isso em mente, estou terminando de escrever minha carta para Lana. Quero entregar quando o treino acabar, assim ela pode ler indo para casa, e se ela não me procurar amanhã, nunca mais eu apareço no treino! Ótima ideia, né? Estou sentindo que é hoje que eu vou finalmente declarar meu amor pela Lana. Deseje-me sorte, diário!
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Olá! Espero que tenha gostado do inicio desse conto, to muito animada em poder finalmente tirar esse conto tão amado, do papel. Se puder, por favor curta, comente e compartilhe com suas amigas sáficas, prometo ser conto de aquecer o coração de qualquer um.
Um agradecimento especial a minha melhor amiga, Giulia, por sempre acreditar em mim. A Jenny, por fazer essa capa maravilhosa, e a Kamilla, por ter passado um dia todo revisando esse conto, lapidando esse diamante bruto. Amo vocês!
Até a próxima ;)


